Em busca do “milagre verde” que garanta o equilíbrio entre energia e clima

Apesar de todos os apelos dramáticos e metas prometidas, a realidade mostra-nos que a ação se move a um ritmo bem mais lento do que as palavras no domínio da transição energética. O aumento da energia renovável nos últimos anos não tem conseguido acompanhar o aumento da procura global de energia e o recurso a combustíveis fósseis continua a crescer. O secretário-geral da ONU, o português António Guterres, tem vindo sucessivamente a reforçar o tom das palavras na chamada dos países à ação, rumo às metas de neutralidade carbónica em 2050 referenciadas no Acordo de Paris. Mas as dúvidas carregam o horizonte de um planeta cujas necessidades energéticas não param de aumentar, fruto do crescimento da população e do consumo, enquanto corre por um “milagre verde”, surja ele em forma de hidrogénio, de amoníaco, fusão nuclear ou outra coisa qualquer que consiga fazer o mundo manter-se dentro dos limites de 1,5 graus de aquecimento global (face aos níveis pré-industriais) até final do século.

O desafio da sustentabilidade energética serve de mote a uma grande conferência que se realiza hoje e amanhã em Lisboa e que reunirá vários especialistas internacionais num debate sobre as melhores formas de “Gerar Energia para o Mundo Preservando o Planeta” – assim é o título da conferência, organizada pelo Clube de Lisboa e que contará com uma intervenção do próprio secretário-geral da ONU, além do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Dos obstáculos políticos ao aumento da tensão geoestratégica que trouxe de volta o fantasma de conflitos bélicos, passando pelos custos sociais e económicos dessa transformação, as ameaças à urgente transição energética deixam o futuro em suspenso. A humanidade não pode continuar a “cavar a sua própria sepultura”, alertou Guterres na sua intervenção de abertura da última cimeira do clima, COP26. Mas a realidade mostra um buraco ainda a aumentar: no primeiro ano após o início da pandemia de covid-19, os sete países mais ricos do mundo (G7) ainda injetaram mais dinheiro (cerca de 166 mil milhões de euros) no apoio a projetos de energia poluente do que em energia verde (129 mil milhões). E o último relatório do Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP) mostra que os 15 países maiores produtores de combustíveis fósseis continuam a planear um aumento de produção até 2030, para níveis superiores ao dobro do que seria condizente com os objetivos climáticos do Acordo de Paris.

“Um dos problemas é que o Acordo de Paris é desdentado. Fala, mas não tem dentes. Ou seja, não oferece ferramentas para concretizar os seus objetivos. Deixa a cada país encontrar as estratégias para atingir essas metas”, refere ao DN José Manuel Félix Ribeiro, consultor da Fundação Calouste Gulbenkian e um dos oradores nesta conferência.

Para o economista, membro do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI/Nova), as energias renováveis estão longe de, por si só, serem o caminho mais eficiente rumo à ambicionada neutralidade carbónica. Além disso, uma transição energética assente na redução drástica da produção de gás, petróleo e carvão projetada pela Agência Internacional de Energia, no seu recente roteiro para uma emissão zero no setor mundial energético em 2050, traz fatores de risco geopolítico e geoeconómico associados.

“A neutralidade carbónica envolve uma série de coisas diferentes. Primeiro, impõe uma enorme destruição de capital em várias indústrias poluentes que foram fundamentais para o desenvolvimento das sociedades nos últimos 60 ou 70 anos. Depois, requer uma necessidade brutal de investimento noutras formas de produção de energia para essas indústrias. Além disso, há uma assimetria enorme nas reservas de gás e de petróleo no mundo. A redução não vai afetar todos da mesma maneira”, sublinha o economista, dando o exemplo do “grupo de países do Médio Oriente e da Eurásia, que verão quedas brutais de receita nesse cenário”, acentuando “tensões geopolíticas”.

Ou seja, mais do que nunca, defende, são necessárias “novas soluções tecnológicas” e que “os países se entendam quanto a essa revolução tecnológica”, seja no armazenamento de energia, na captura de CO2, formas de extração de hidrogénio verde ou sem recurso à queima de hidrocarbonetos, a melhoria da eficiência energética ou outras soluções.

A aposta do Japão

Um exemplo que José Manuel Félix Ribeiro destaca é o do Japão, “que em 2017 foi o primeiro país a escolher reformular todo o seu sistema energético em torno do hidrogénio” e tem apostado em parcerias com os seus parceiros comerciais de longa data, seja a Austrália ou a Arábia Saudita, para extrair hidrogénio também a partir de produtos fósseis, como o carvão e o petróleo, sem emissão líquida de CO2, apostando na captura e armazenamento.

Ou seja, enquanto vê a dependência de hidrocarbonetos como inevitável no curto prazo, o país busca, no longo prazo, mudar a fonte de hidrogénio de combustíveis fósseis para energia renovável, incluindo um volume crescente de energia renovável de origem doméstica, fazendo a transição gradual do hidrogénio azul (com captura do carbono emitido durante a produção) para um futuro que espera dominado pelo hidrogénio verde (usando fontes renováveis para a eletrólise da água).

José Manuel Félix Ribeiro intervirá no painel sobre “geopolítica e a geoeconomia das mudanças climáticas”. Ao todo, passarão pelo auditório da Agência Europeia de Segurança Marítima, em Lisboa, ou através de Zoom – a conferência decorrerá em formato híbrido – 26 convidados de várias nacionalidades, distribuídos por cinco painéis e uma mesa redonda que abordarão vários tópicos, dos combustíveis fósseis às energias limpas e renováveis, o papel dos oceanos ou a crescente mobilização popular, em organizações da sociedade civil e particularmente da juventude.

“Esta conferência vem na sequência de uma outra que organizámos há um ano sobre os oceanos e insere-se no âmbito da promoção de debates sobre grandes desafios globais, que é um dos pilares da nossa intervenção”, explica Fernando Jorge Cardoso, diretor executivo do Clube de Lisboa, presidido pelo embaixador Francisco Seixas da Costa.

O papel dos oceanos

Os oceanos também voltarão à baila nesta conferência, para debater o seu papel nesta transição energética rumo à sustentabilidade. “A utilização do mar tem de estar, inevitavelmente, em cima da mesa do debate sobe as energias renováveis”, diz ao DN António Sarmento, presidente da empresa WavEC Offshore Renewables, outro dos oradores. Também ele identifica o hidrogénio (“verde e azul”) como uma aposta imprescindível para alimentar indústrias pesadas “como a aviação ou as cimenteiras, que não podem ser eletrificadas”, e os mares como protagonistas que podem assumir relevo tanto na produção, com os parques eólicos offshore, como no armazenamento de hidrogénio.

Para António Sarmento, professor associado (jubilado) do Instituto Superior Técnico, a eólica offshore (produção de energia pela força do vento em alto mar) apresenta o maior potencial entre o leque de energias renováveis pelas quais passa “obrigatoriamente” o equilíbrio entre produção energética e proteção do clima. E dá conta de um novo conceito, no qual a WavEC está a trabalhar, que é o de aproveitar os parques eólicos offshore para criar aquilo a que chama áreas marinhas beneficiadas, mais do que protegidas.

“Os parques eólicos são uma forma ativa de proteger as comunidades bentómicas [comunidades de peixes e organismos que habitam o fundo do mar], porque são área sem navegação nem pescas. Mas se desenvolvermos ali a aquacultura de algas, por exemplo, aumentamos a captura de CO2 e a produção de biomassa, além de contribuir para os empregos locais. E se desenvolvermos aquacultura de bivalves, que são excelentes filtros, estamos a melhorar a qualidade da água. Ou seja, isto é introduzir mecanismos que ajudam a natureza a regenerar mais rapidamente, compatibilizando a energia renovável com a proteção dos oceanos e da vida marinha”, explica António Sarmento, que além da atual acidificação dos oceanos, do problema dos plásticos e da exploração pesqueira vê também a crescente tensão geopolítica como um “desafio acrescido” para a exploração sustentável dos oceanos nos próximos anos.

Neste caminho de avanços e recuos para atingir a sustentabilidade climática, o nuclear (que, na sua produção, é uma fonte limpa, pois não liberta CO2) voltou a ganhar defensores nos últimos tempos, com a União Europeia a conceder-lhe a rotulagem verde (tal como ao gás). Uma decisão que motivou a contestação de alguns países mas agradou a outros, como a França, de forte tradição no nuclear e que quer “lançar-se na nova geração de reatores nucleares que EUA e Reino Unido já desenvolvem”, lembra José Manuel Félix Ribeiro.

O cisne negro

Renováveis, nuclear, gás, hidrogénio, amoníaco… o mundo vai baralhando alternativas que permitam urgentemente ganhar tempo na corrida contra o desastre ambiental, enquanto alimenta a expectativa de ouvir o grande eureka da fusão nuclear, que providenciaria energia limpa e ilimitada. “Se queremos toda a eletricidade limpa, tem de se avançar para a fusão nuclear”, constata o economista, salientando o facto de que há já 24 empresas a nível mundial a tentar ganhar essa corrida. “A solução para os problemas ambientais vai ter de ser tecnológica. A ideia de que a humanidade vai deixar de ser gastadora para passar a ser frugal parece-me uma ideologia utópica”, resume.

Saliem Fakir. “Precisamos de uma escalada das renováveis para suprir escassez de energia em África”

Diretor executivo da African Climate Foundation fala da importância da transição energética em África para suprir falhas de acesso e evitar emissões futuras.

África é o continente que menos contribui para a emissão de CO2 e o mundo desenvolvido tem ficado aquém das compensações prometidas. Se não for bem gerida, a transição energética pode aumentar desigualdades, mas também pode ser uma oportunidade, defende Saliem Fakir.

Como está a ser encarada a transição energética em África, onde muitas pessoas não têm ainda sequer acesso a eletricidade, e qual o papel dos países africanos neste desafio global para uma produção de energia limpa?

As emissões globais de carbono da África são pequenas, exceto para a África do Sul, que concordou em assinar um acordo de financiamento global anunciado na COP 26, 8,5 mil milhões de dólares, sobre o clima e a transição justa. No resto do continente, precisamos de um escalada acessível e viável de renováveis que possam suprir a escassez de energia, especialmente na África Subsaariana, onde mais de 600 milhões de pessoas não têm acesso a eletricidade barata. E nesse domínio África tem que mudar a sua diplomacia climática. Em lugar de caridade financeira, precisa de apoio ao investimento.

Como parte do marco do acordo climático de Paris em 2015, os países ricos concordaram em fornecer 100 mil milhões por ano aos países em desenvolvimento para ajudá-los na adaptação climática, mas essa meta tem ficado por cumprir. Teme que a transição energética possa aumentar a desigualdade global?

As transições não são apenas problemas de finanças climáticas, elas requerem soluções económicas inteiras. Temos que diminuir a dependência de combustíveis fósseis, mas podemos usar essa pressão para moderrnizar e reindustrializar economias rumo a uma plena eletrificação. Se as transições não forem bem geridas, elas podem muito bem levar à desigualdade. Por exemplo, as transições de carvão na África do Sul podem levar a perdas significativas de empregos no setor de carvão. Países que têm alta dependência das exportações de petróleo e gás podem ver de repente a procura cair e os empregos não são apenas perdidos no setor de petróleo e gás, mas também no resto da economia.

O facto de um país africano, o Egito, sediar a próxima cimeira do clima, COP27, pode servir para materializar um plano de apoio a países em desenvolvimento na transição energética?

Esse é um bom ponto. Atualmente, o foco está na adaptação e nas finanças climáticas, mas precisamos aumentar o foco na gestão das transições energéticas. Tanto a adaptação quanto a mitigação são importantes e África tem que evitar emissões futuras. Embora as emissões de gases com efeito estufa possam ser baixas hoje, elas podem aumentar significativamente no futuro e o perfil de emissões de África pode começar a parecer-se com a Índia e a China. Espero que as transições energéticas também recebam a devida atenção na COP 27.